Das
variadíssimas manifestações carnavalescas efectuadas de norte a sul do
País merecem particular referência aquelas que continuam a manter-se
fiéis às suas vertentes tradicionalmente ruralistas, quer em função da
sua situação geográfica, quer pelo envolvimento das personagens que lhe
estão associadas – as populações locais.
Os
habitantes desses lugares representam o suporte genuíno de toda uma
ritualidade, por vezes complexa, que nada tem a ver com os padrões
modernos dos Carnavais com objectivos turísticos, embora, e talvez por
isso mesmo, enfermando de pouca ou nenhuma divulgação, nem mesmo a nível do (re)conhecimento da sua tradição.
Desse
grupo, de algum modo restrito, faz parte o Carnaval de Podence (Macedo
de Cavaleiros), em terras do Nordeste Transmontano, onde a quadra
carnavalesca é festejada de forma a fazer lembrar as suas remotas
origens, representadas ali numa encenação vincadamente pagã.
Neste
ritual são visíveis as raízes que ligam o Carnaval de Podence às
antigas festas dos Romanos, as Lupercais, efectuadas no dia 15 de
Fevereiro, segundo uns em louvor de Pã, deus dos rebanhos, da
fecundidade e dos pastores ou cabaneiros, enquanto outros sustentam que
seriam realizadas em honra de Luperco, também ele deus pastoril da
protecção dos rebanhos contra os lobos.
Consideradas
das festas mais importantes da antiga Roma, eram particularmente
marcadas pelo desfile, nas ruas, de grupos de homens seminus que
fustigavam com peles de cabras, imoladas nessa ocasião, as mulheres que
encontravam no caminho, num rito punitivo, tendo por intenção torná-las
fecundas.
Ritual
a perpetuar-se no Domingo e Terça-Feira de Carnaval, graças à actuação
dos «Caretos de Podence», quando, pelas ruas, correm atrás das mulheres –
principalmente das novas e solteiras – para «chocalhá-las», isto é,
para abraçá-las lateralmente e com movimentos rápidos de semi-rotação da
cintura fazer com que os chocalhos que transportam à cinta lhes batam
repetidamente nas nádegas.
Os
«caretos» (rapazes solteiros) constituem-se como as figuras principais
da festa, os seres quase fantásticos destes rituais lúdicos e pagãos,
transmitidos de pais para filhos, desconhecendo-se, no fundo, a sua
verdadeira origem e significado.
Simbolicamente
associados, na crença popular, «ao espírito do mal», ou a tudo aquilo
que se afigure misterioso – forças sobrenaturais e ocultas, curandeiros,
bruxos, poderes diabólicos e ao próprio Satanás – auferem de total
impunidade durante esse curto período, apenas dois dias, embora costumem
fazer uma aparição no Domingo Magro.
Em
qualquer lugar em que se encontrem é sempre grande a algazarra que
provocam, uma vez que comunicam entre si e com os circunstantes apenas
por berros, numa linguagem que ninguém entende. Correm frequentemente
atrás de quem calha e dançam e saltam como verdadeiros seres invasores e
causadores de toda uma desordem e abuso instaurados a que não é
possível, nem se deseja, afinal, pôr termo.
Os
fatos dos «caretos», extremamente garridos, são guardados e vestidos,
muitos deles, geração após geração, constituindo uma verdadeira relíquia
para a família que os possui. Confeccionados na própria aldeia, são
feitos de colchas antigas, de lã ou de linho (hoje já raras), tecidas em
teares caseiros, cortadas depois ao jeito de fato: calças e casaco com
gorra ou capuz. As três peças são quase totalmente recobertas com
fieiras de franjas de lã de carneiro, tingidas de diversas cores, ao
gosto de quem os faz ou veste, embora as cores tradicionais sejam o
vermelho, o amarelo e o verde.
Somente
para as franjas, também elas feitas em tear, são necessários (dizem)
sessenta novelos de lã. Um fato de «careto» pode orçar, actualmente, em
mais de 400 euros – com as franjas de lã tradicionais substituídas por
lã de fibra, sem contar com a dificuldade em encontrar e comprar uma
colcha antiga…
Como
adorno, ostentam à cintura, presos num cinto de couro, fiadas de
chocalhos e sobre o peito, cruzadas, as «bandoleiras», igualmente em
couro, por vezes com uma ou duas campainhas. O número
de chocalhos, hoje, é variável, conquanto o preceito consistisse em
doze chocalhos de latão, «se o fato fosse rico», ou apenas oito, «no
caso do fato ser mais pobre». Na mão levam um pau ou bengala de madeira
de freixo ou castanheiro, que lhes serve de apoio quando saltam ou
correm ao som dos chocalhos. Antigamente, usavam uma bexiga de porco ou
uma pele de coelho cheia de ar que empunhavam para bater, ritualmente,
em quem com eles se cruzava, costume ainda mantido por um ou outro.
A
designação «caretos» resulta da palavra «careta» ou «máscara», sendo as
de Podence, como, de resto, o são todas as máscaras deste género,
terríficas. Trata-se de máscaras rudimentares, feitas de latão ou
folha-de-flandres, pintadas de vermelho ou negro, com um nariz
pontiagudo e três aberturas para os olhos e a boca. Em tempos mais
antigos as máscaras eram feitas também de cabedal ou de madeira
primorosamente esculpidas.
As
praxes do Carnaval de Podence obrigam a que as crianças do sexo
masculino (até aos 11, 12 anos) se mascarem como réplicas dos «caretos»
adultos, embora menos elaboradas e se comportem à sua semelhança.
Conhecidos por «facanicos», acompanham, nas suas andanças e
brincadeiras, o grupo dos rapazes solteiros. Certamente, a forma
encontrada para que a figura dos «caretos» se não perca, antes se
reforce no objectivo de preservar e garantir a continuidade desta
tradição carnavalesca.
No
conceito popular, só o «careto» possui os poderes propiciatórios,
profilácticos e expurgatórios no momento da viragem do ciclo agrário - a
passagem do Inverno para a Primavera. Poderes exercidos sobre os
campos, purificando-os, e a tornar fecunda a produção das terras ao
afugentar delas as «forças nocivas ou os espíritos das trevas, que as
invadem e empobrecem». Desta forma se perpetuam remotos cultos
gentílicos de vegetação e fertilidade, que podem mesmo ir mais longe,
considerando que ao «careto» se atribui o poder de «eliminar qualquer
mal da Natureza e da própria comunidade».
E
se da Antiguidade lhe vem a Festa dos «Caretos», de lá virá também,
supostamente, a designação de «lares» dada em Podence às grandes
lareiras sobre as quais se cozinha ainda hoje em panelas de ferro. Quem
sabe, a fazer lembrar os deuses Lares – simbolizados por pequenas
estatuetas –, colocados nos altares domésticos de cada casa romana, dia e
noite alumiados.
Ao
redor dos «lares» reúne-se a família, sentada nos bancos de madeira –
os «escanos» –, a dar voz à ceia e aos serões do tempo frio, aconchegada
no calor do lume, quando a água gela nas fontes e deixa de fazer ouvir a
limpidez do canto.
Na
manhã de Quarta-Feira de Cinzas, despidos os fatos de «careto», que se
usaram até Terça-Feira de Entrudo, todos comparecem à missa na Igreja de
Nossa Senhora da Purificação. A partir desse dia é considerado pecado
ouvir-se um chocalho – em Podence os animais não costumam usá-los; só
os «caretos».
Fonte: Livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol. II
Parabéns pelo artigo sobre os Caretos.
ResponderEliminarPara o Endovelico ....
http://acaminhodacasa.blogspot.com/2013/05/o-santuario-rupestre-da-rocha-da-mina.html