sexta-feira, 22 de março de 2013

Inscrição rupestre do Cabeço das Fráguas 

(Sabugal, Portugal)

 

 

 

A primeira referência conhecida a esta inscrição figura nas Memórias Paroquiais do séc. XVIII, em que o pároco de Pousafoles do Bispo menciona existir "em todo o cume" do Cabeço das Fráguas "uma pequena planície, e uma lage virada ao Nascente com uns caracteres que se não deixam conhecer" (Curado, 1989:350). É, contudo, a partir da publicação em 1959, de Adriano Vasco Rodrigues, que esta inscrição conhecerá o interesse da comunidade científica, tendo desde então, sido objecto de aturados estudos linguísticos e etimológicos. A lage encontra-se disposta ao nível do solo, no cume do Cabeço das Fráguas, maciço granítico com 1015 m de altitude, a c. de 15 km a sul da Guarda. Apresenta o canto inferior direito mutilado, afectando a leitura de parte da inscrição, sendo no entanto possível, como chamou a atenção F. Curado (1989: 350), já existir a falha originalmente, conforme parece apontar a inclinação oblíqua da 6ª linha, pelo que faltaria assim, apenas o final da 7 . As letras, de ductus grosseiro e irregular, encontram-se profundamente gravadas, não oferecendo quaisquer dificuldades de leitura, à excepção da 3ª letra de LAEBO, que Untermann (1997) recentemente propôs corrigir-se para LABBO.

OILAM . TREBOPALA ./ INDI . PORCOM . LAE(uel B)BO ./ COMAIAM . ICCONA . LOIM/INNA . OILAM . VSSEAM ./ TREBARVNE . INDI . TAVROM./ IFADEM [...?]/ REVE . TRE [...]
Trad.: "A Trebopala uma ovelha e a Laebo um porco, a Iccona Loiminna uma vaca (vitela?), a Trebaruna uma ovelha de um ano(?) e a Reva Tre-(?) um touro de cobrição"

Não nos interessa aqui debruçarmo-nos sobre o estudo linguístico e etimológico dos vários componentes do texto epigráfico, mas sim analisar a presença do grupo de vítimas da suovetaurilia romana - oilam, porcom, taurom -, e a pertinência da sua correlação com as cinco divindades mencionadas: Trebopala, Laebo, Iccona Loiminna, Trebaruna e Reva. A Laebo (uel Labbo) é oferecido um porco, a Trebopala e a Trebaruna uma ovelha, a Iccona Loiminna um animal que podemos talvez identificar com uma vaca e finalmente, é Reva quem recebe a oferenda maior, o touro semental.

Regra geral, consideram-se todos os teónimos em dativo. No entanto, se isso se pode aplicar a Laebo - partindo do principio de que se trata de facto de um tema em -o-, não invalidando, porém, tratar-se de um nominativo indígena presente em -bho -, dificilmente se aplica em relação a Trebopala e Iccona Loiminna, ambos temas em -a que deveriam fazer o dativo em -ae/-e, á semelhança de Trebaruna e Reva. Uma solução poderia passar por considerarmos os primeiros três teónimos no nominativo e os dois últimos no dativo, articulados assim, em dois blocos distintos, possivelmente divindades menores/ divindades supremas. Todavia e para efeito prático, nesta primeira abordagem, consideraremos apenas a etimologia dos teónimos em si.

Para Trebopala é comummente aceite o composto treb- e -pala. O radical treb-, amplamente atestado nas línguas célticas, não coloca problemas quanto ao seu sentido de "povo, tribo"; já a voz -pala é mais difícil de definir. Uma das propostas é a sua aproximação à Víspala védica e aos Pales romanos, ambos vinculados à protecção dos rebanhos (Dúmezil, 1958: 80 e Witczak, 1999: 66). A este propósito, Patrício Curado (1989: 250) chama a atenção para o facto de em Trás-os-Montes e no Gerês (Portugal), "pala" manter o significado de "empenho, protecção". Trebopala encerraria, assim, o possível sentido de "protectora da tribo", com eventual conotação agrária.

Laebo encontra-se unicamente representado no Cabeço das Fráguas - com um total de quatro dedicatórias, tratando-se ao que tudo indica de uma divindade tópica. A sua análise etimológica apresenta, contudo, grandes dificuldades[16]. Recentemente, Witczak (1999: 68-69) propôs considerar-se Laebo no dativo do plural, por aproximação a formas como o gaulês matrebo, que surje em vez de matribus. Segundo esta interpretação poder-se-ia supôr em Laebo uma derivação de Lahebo, possivelmente equivalente a Laribus. Esta proposta choca, porém, com a ocorrência da terminação -po em todas as outras dedicatórias conhecidas, a menos que se considere a evoluçãp b>p, em testemunhos que são decerto posteriores. O presente estado de conhecimentos não permite assim, avançar nada de minimamente concreto relativo a esta divindade.

Iccona Loiminna corresponderá a um teónimo seguido de epíteto. O teónimo em si parece corresponder-se ao gaulês Epona (Gil, 1980; Maggi, 1983: 8 e Witczak, 1999: 66-67). A possível derivação do epíteto de *louksmena, "brilhante" e a sua ocorrência numa das inscrições em língua lusitana de Arroyo de la Luz (Masdeu, 1800), poderia eventualmente sugerir estarmos ante uma divindade de 2ª função. O difícil sentido etimológico, o facto desta inscrição constituir a sua única referência e a impossibilidade de definir ao certo o carácter da sua oferenda não permitem, todavia, tecer quaisquer outras considerações.

Relativamente a Trebaruna, divindade amplamente atestada no núcleo lusitano, estamos ante uma forma que comporta igualmente o radical treb-, seguido de aruna. Blanca Prósper (1994) propõe para -aruna, a relação com o gót. runs < *runós, "corrente, fonte", assinalando a existência de diversos hidrónimos com esta raiz e a possível relação etimológica com o celta Arawn, rei de Annwfn, do muito profundo (*araunos). Buá Carballo, considera, por outro lado, a derivação *Trebaro-, com paralelo no a.irl. trebar, "sábio" (2000: 73-74). Atendendo a esta conjugação etimológica, somos tentados a ver em Trebaruna, o possível sentido de "segredo do povo", "a sabedoria do povo", integrável, portanto, no âmbito de uma eventual divindade de 1ª função.

A última divindade mencionada é Reva, também de ampla difusão cultual em toda a zona lusitano-galaica, seguida de TRE-, que porém, não podemos classificar seguramente como seu epíteto. A opinião mais difundida é a de que se trata de um tema em -a, fazendo o dativo em -ae = e. Recentemente, com base na possibilidade do R lusitano reflectir o D indo-europeu, Witczak (1999: 71) avançou a proposta de Reue constituir o dativo de *Reus, portanto, uma divindade uraniana assimilável a Diaus, Zeus e Júpiter, corroborando assim a anterior interpretação de Mª de Lourdes Albertos de Reva como derivado do radical *reg, "direito, lei" (1983) e as várias situações de identificação desta divindade com importantes orogenias.

Voltando agora à análise do rito sacrificial, teríamos assim uma possível sequência de duas divindades de conotação agrária (ou de 3ª função) - Trebopala e Laebo -, a quem são oferecidos, respectivamente, uma ovelha e um porco; uma divindade de conotação indefinida que poderíamos colocar, a título de hipótese, eventualmente no âmbito da 2ª função - Iccona Loiminna -, à qual é sacrificado um animal também ele indeterminado, possivelmente uma vaca(?); uma eventual divindade de carácter soberano - Trebaruna -, à qual é, porém, oferecida uma ovelha e, finalmente uma divindade suprema, uraniana - *Revs -, a quem é consagrada a vítima mais importante, o touro de cobrição.

A primeira divergência que imediatamente se destaca entre este rito e os seus eventuais congéneres védico e romano, é o facto de a maior oferenda, o touro, ser dedicada a uma divindade de "primeira função" e não a uma entidade de conotação guerreira. Por outro lado, a comprovar-se a identificação de commaiam com "vaca", teríamos uma segunda divergência e, ainda uma terceira, expressa no sacrifício de uma ovelha a uma divindade de possível carácter soberano como Trebaruna. Não sabemos se oilam corresponde a "ovelha" ou "carneiro", ou constitui um neutro, o que também dificulta a análise da sequência sacrificial. O contexto ritual - de propriação agrária -, parece ser, porém, o mesmo nos três ritos, encontrando-se entre nós sublinhado pela caracterização do touro como semental e possivelmente, pelas entidades divinas envolvidas.

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